31 dezembro 2003

Submerso em mim


Havia uma ausência e eu não sabia, mas era eu apenas á procura de mim próprio! Como pode a vida afastar-nos tanto de nós? Por isso sentia este aperto no peito a moer aos poucos como se me faltasse algum pedaço. E faltava!
Faltavam muitos pedaços... Emoç&etilde;es, sentimentos, que se haviam afundado lá bem no íntimo de mim, num medo de despertarem apenas para me magoarem. Agora é região virgem, que tenho de atravessar vencendo o medo das feras escondidas, apenas para descobrir o que é básico que se saiba: Quem somos!
Dói-me a alma. Não porque esteja ferida, mas porque está calada. Calada há tanto tempo e foi enchendo e é agora um mar, um profundo e misterioso mar. Como um explorador, preciso mergulhar cauteloso nesse mundo, que sendo o meu, é como se fosse de outro.
Tenho medo. Seria mentir, se dissesse que não tinha medo. Mas não suporto viver na angústia deste desconhecido. Por mim próprio tenho de ir ao fundo deste mar e voltar. O que descobrirei? Não sei. Espero que não seja outra vez a dor. A dor que me acompanhou tanto tempo, e que me fez rodear o coração de muros, muros que se encheram e se transformaram neste mar. Espero que não seja a crua revelação de que a felicidade me escapou apenas porque tive medo de expor o coração ao amor. E que neste instintivo desejo de o proteger, acabei por o proteger de sentir o que mais queria. Ou talvez descubra uma espécie de daltonismo sentimental, que me impede de sentir a plenitude do sentir.
Tenho medo, de estar carregando uma enorme pedra sobre a cabeça. (Talvez seja por isso que me doem os braços.) Se descobrir que a minha cegueira me impediu de ver, então essa pedra cair-me-á sobre a cabeça e talvez me enterre de vez.
Tenho saudades de mim, de um tempo em que era apenas eu, com todo o tempo do mundo para mim. Um tempo parecido com o de agora, em que me construía ao abrigo dos outros, sem contudo estar plenamente ausente. Um tempo em que todo eu me construía e aprendia a conhecer-me. Suspenso das leis da gravidade, protegido e amado, submerso em líquido amniótico. Mas afinal, era na realidade submerso em mim...

24 dezembro 2003

A Ceia de Natal dos Cardeais



Qualquer semelhança com a realidade é pura coincidência!

Todos os anos o cardeal António convida alguns cardeais seus conhecidos á sua residência, para a habitual ceia de Natal. Era uma ceia descontraída em que se falava sem pudor na língua, como se fosse uma enorme confissão. &Acute;s vezes chegava a ser desagradável, e daquela vez não foi excepção. Tudo começou com uma infeliz afirmação do cardeal Ricardo:
-- Sabem, o meu desejo maior era que um Natal, o Nosso Senhor viesse á Terra, e fosse a esses desgraçados sem abrigo, e os levasse para o seu seio!
-- Porra Ricardo, você e o Hitler estão ao mesmo nível de pensamento!
-- Ah Ah Ah -- riu o cardeal Marcos.
-- Além disso... -- continuou o cardeal Manuel, o mais novo e o mais destravado de língua -- Nosso Senhor num precisa de vir á Terra, está em todo lado!
O cardeal Marcos escangalhava-se a rir torcendo a sua gorda barriga junto á mesa, o que obrigou o criado (único e de confiança) a fazer uma exercício malabarístico para evitar entornar-lhe a sopa quente na barriga.
-- Desculpa aí amigo... -- disse o cardeal Marcos ao criado -- Mas olha lá, deixa a terrina, eu gosto de sopa. E vê se na próxima me cortas esse cabelo, está bem?
O criado fez uma vénia ligeira, deixou-lhe a terrina, e foi buscar outra pra servir os restantes.
O cardeal Rodrigo agastado com o cardeal Manuel fez contra-ataque:
-- Ao menos não roubo as esmolas, pra as ir gastar com putas!
-- Meus Senhores! Então? -- pediu conciliatório o cardeal António, anfitrião da ceia.
O cardeal Pedro, que já tinha bebido uns aperitivos com o estômago vazio comentou:
-- Antes ir ás putas que ser pederasta! -- e riu-se.
-- Os pederastas também so filhos do Senhor... -- comentou o cardeal Daniel.ã
-- Tendes razão! -- e rindo o cardeal Martinho acrescentou -- Ainda num sóis orfão!
-- A conversa tá a azedar...
-- É como esta sopa... -- disse o cardeal Marcos, que já esvaziara meia-terrina.
-- Num acha que comer tanto lhe faz mal? Depois fica mal dos intestinos... -- disse o cardeal Pedro.
-- E que interesse tem nos meus intestinos? Hein? -- disse o cardeal Marcos agastado. Detestava que lhe lembrassem que o seu maior pecado era o da gula. Mas desde que lera Pantugruel, ficara com o mal.
-- Ao cardeal Pedro só lhe interessa a ultima parte do trato intestinal! Eh eh eh... -- gracejou o cardeal Martinho.
-- Se faz favor, deixem-se de remoques, vai ser servido o prato de peixe... -- pediu conciliatório o cardeal António.
-- Ah ah ah! Há gente que não é carne, nem peixe... -- gracejou de novo o cardeal Martinho.
-- Tem razão amigo Martinho, estavamos a precisar de uma nova inquisição, para meter os hereges na ordem...
-- Irra cardeal Rodrigo, se eu acreditasse na reencarnação ía jurar que era o Torquemada! -- comentou com ironia mordaz o cardeal Manuel.
-- O cardeal Manuel, é que não compreende o bem que esses homens fizeram! -- deixou escapar o cardeal Rodrigo.
-- Comam o peixe... -- pediu o cardeal António.
-- Ó Rodrigo se não quiser o peixe, deixe pra mim... -- pediu o cardeal Marcos.
-- Eu dispenso o peixe, apesar de me parecer com excelente aspecto! Criado recolhe o meu peixe... olha podes dá-lo aos gatos. -- disse o cardeal Martinho.
-- Aos gatos?!! -- protestou o cardeal Marcos.
-- Tendes razão! -- disse o cardeal Daniel -- Com tantos pobres, e vai dar o peixe aos gatos!
-- Ora, o que disse Nosso Senhor? "Que pobres sempre teréis..."
-- E isso quer dizer o quê? -- perguntou o cardeal Manuel.
-- Que os pobres nunca hão-de acabar! -- concluiu o cardeal Martinho.
-- Você é um cínico é o que é­-protestou o cardeal Daniel. -- Já agora também deu o corpo dele pra matar a fome não?
-- Pois... Já vi, o peixe é pra cardeais e gatos, e os pobres que papem hóstias! -- comentou o cardeal Manuel.
O criado que sempre passara despercebido falou então:
-- Posso servir a carne?
Todos concentraram os olhares no criado, e como este estava mais perto do cardeal António, este reparou nas mãos do criado e perguntou:
-- Que é isso que tens nas mãos?
-- Até parecem estigmas! -- comentou o cardeal Manuel.
-- Que foi isso? -- voltou a interrogar o cardeal António.
O homem disse de modo simples:
-- Fui crucificado.
Riram-se!
-- Um criminoso a servir-nos a sopa... -- comentou o cardeal Martinho.
-- Mas foste crucificado aonde?
-- Em Jerusalém.
-- Ena! -- exclamou o cardeal Marcos.
-- Por quem?
-- Por vocês.
-- Por nós? Eh eh eh -- riu de modo escarninho o cardeal Marcos
-- Como te chamas, pobre homem?
-- Jesus...

23 dezembro 2003

De novo por aí...


Estive ausente... Ausente por dias a fio, numa viagem ao longo da galáxia. Fui ao encontro das estrelas, porque na Terra, todas me parecem demasiado pequenas, ofuscadas por outras luzes, que não têm garantidamente a mesma beleza. Perdi-me nessa jornada. E andar perdido, no espaço, ou na Terra é sempre um perigo.
Regresso, encontro-te ou talvez não...
A minha ausência modificou-te, ou talvez seja só eu com outro olhar.
Agora ao invés de te causar alegria, gero apenas constrangimento. Perdoa a minha ausência, assim como eu te perdoo esse olhar desolado e triste. És livre!
Juro que és livre! Não te sintas devedora de nada. Eu é que estive ausente, nessa jornada no vazio, e nem sequer devia ter regressado. Talvez nem tivesse muita vontade de regressar.Talvez nem quisesse regressar. Talvez tenha regressado por automatismo, por estar farto de estar ausente. Ou como o cão, vim atrás do cheiro familiar da casa.
Não, não precisas de ficar triste agora. Eu vi as estrelas de perto e se choro, foi apenas a poalha delas que me entrou na vista...
Afinal, quando o cão encontra a porta fechada, dá duas voltas e vai por aí, feito cão vadio.
É isso que vou fazer, irei de novo por aí...

11 dezembro 2003

Meiguinha


vela
A notícia atingiu-o como um soco em cheio na boca do estômago. Contorceu-se numa agonia esquesita que lhe tirou a vontade de brincar. Meiguinha morrera num acidente. Tinha 19 anos.
Como pode morrer alguém que ainda nem sequer vivera por completo?
Não mais a ía encontrar nos espaços que um dia partilharam. Todas as mortes o revisitaram. Todas as saudades. Toda a impotência e frustração, o ter de aceitar o que era inaceitável!
A morte não é um inimigo. É apenas a sombra que nos persegue, com sol e sem ele.
Havia raiva em cada punho fechado, e nessa dor, lágrimas que teimavam em aflorar os olhos. Meiguinha nunca mais voltaria a cerrar os punhos, nem a chorar.
Amanhã as coisas voltariam á sua rotina, mas já não seria a rotina dela. Tentou imaginar os pais, os irmãos, os amigos. Em todos eles havia agora um vazio, que nada podia preencher.
Foi um acidente...
Mas o acidente maior mesmo, é nascer.

10 dezembro 2003

Todas as dores do mundo...


De entre todos nós, ele era sem dúvida o mais dotado! Escrevia poemas tão maravilhosos, tão cheios de musicalidade e sentimento, que causava admiração e inveja a nós, míseros aprendizes de feiticeiros das letras. Quando falava da dor, as palavras dele magoavam-nos a alma, a sua amargura saía-nos pelos poros a ponto de ficarmos incomodados. Mas o que era incompreensível é como alguém que escrevia palavras tão belas podia ser tão execr´vel, um autêntico tartufo.
Não era arrogante, nem imodesto, antes pelo contrário. Parecia escrever com desprezo, como se escrever fosse para ele uma tortura!
Ninguém o percebia. Eu queria perceber. Não por altruísmo, queria que ele fosse pró inferno a mais o seu feitio! Mas já que não escrevia nada de jeito, ao menos podia armar-me em biografo e talvez por mera relação simbiótica pudesse ficar com alguma fama! No fundo, eu reconheço, era mais mesquinho que ele, mas em mim era compreensível, carago! Era uma questão de sobrevivência, nele era o mau feitio, que aturavamos devido à sua genialidade.
Nenhum de nós alguma vez assistira ao parir dos seus versos, ele recusava obstinadamente a presença de alguém enquanto escrevia. Alguns de espírito ainda mais mesquinho que o meu, diziam que não era ele que escrevia, que era outra pessoa. Mas depois também ninguém explicava melhor as palavras do que ele. Vá lá, não pensem que somos todos uma cambada de cabotinos! Apesar de o detestarmos quanto ao feitio, daríamos a alma por apenas um dos seus poemas! Aliás já tínhamos desancado um crítico parvo, que dissera umas barbaridades a respeito dele. Podíamos ser mesquinhos, mas também sabíamos ser amigos.
Mas eu queria, como biografo e apenas para me documentar, de assistir ao parir de um poema. Então um dia com o concluio de uns amigos, consegui ficar dois dias a bolachas e um cantil de whiskey, enfiado no forro do telhado, do velho quarto onde ele habitava. Foram dois dias infernais, sem poder lavar-me e a mijar pra dentro de uma garrafa de cerveja! Uma experiência horrorosa, que tentei descrever num poema de angústia, mas que me pareceu ainda mais horrível que a experiência! Mas estou a desviar-me do tema... Dizia eu que finalmente consegui ver o parir o de um poema. Era tarde da noite e ele regressava dos copos, que era aliás a nossa actividade predilecta. Ele sentou-se na cadeira do quarto, junto a uma pequena secretária e segurou a cabeça entre as mãos, e ouvi-o chorar. Era uma cena indescritível, aquela besta de mau feitio, a chorar. Vi-o agarrar numa esferográfica e num papel e começar a escrever... Contorcia-se, como se tivesse dores horríveis e consegui-a ouvi-lo gemer. Até fiquei com medo que tivesse a ter um ataque e que como o Camões quisesse salvar o seu génio para a posteridade, mas mal acabou de escrever, pareceu ficar bem. E deitou-se vestido e tudo, apenas atirou com os sapatos para o meio do chão.
Um dia decidi confrontá-lo, pedir-lhe o seu segredo, expliquei-lhe que era o seu biografo. Tratou-me mal pra caramba, dizendo:
-- Como é que um imbecil analfabeto como tu, quer ser meu biografo hein? Cusco do carago! Bisbilhoteiro! Se escreveres alguma mentira a meu respeito, desanco-te com tantas, que de pretenso biografo passas a bombo efectivo!
Suportei aquele trato de cão, apenas por amor à arte! Humilhei-me e supliquei que me explicasse o seu segredo. E um dia, em que o arrastei mais bêbado que eu para sua casa e depois de ele me ter vomitado as calças, presumo eu que mais pra me humilhar do que por bebedeira, ele decidiu contar-me o seu segredo:
-- Anda cá palhaço! -- disse-me ele, enquanto eu o deitava na cama.
-- Sim, diz lá...
Com uma das suas manápulas agarrou-me pelos colarinhos e chegou-me a 5 cms da sua face que trezandava ao bafo do álcool e a cheiro de vomitado.
-- Queres saber o meu segredo imbecil? -- E largou-me antes de eu desmaiar com o cheiro. -- Eu conto-te o meu segredo! Trata-se de uma maldição, de uma maldição tão antiga quanto o mundo... O Nosso Senhor teve esse maldição, eu tenho essa maldição, e sei lá quem mais...
Achei que ele estava tão perdido de bêbado que delirava! Mas antes isso que entrar em como alcoólico e deixei-o falar.camelo morto
-- Olha analfabeto, para escrever bem, é preciso estar disposto a pagar o preço...
-- Que preço? -- perguntei curioso. Mais tarde dei graças a Deus de ser apenas um palhaço imbecil e analfabeto, com pretensões de biografo!
Ele sorriu, mas era um sorriso trocista, quase insultuoso e concluiu antes de adormecer:
-- O preço é estar disposto a suportar todas as dores do mundo...

09 dezembro 2003

Doce Irmã Alma


O avô fazia 90 anos, era um velho lúcido, com uma clareza de espírito invejável, e parecia feliz, eu era o seu bisneto e aos 20 anos, achei que me devia aproveitar da sua experiência e como ele estava bem disposto, decidi perguntar-lhe:
-- Avô... Qual é o seu segredo?
Ele olhou-me com doçura e respondeu:
-- Qual deles, meu filho?
Sorri-lhe.
-- Sim, deves ter muitos avô. Mas só queria saber, o teu segredo de estar feliz, de bem com a vida.
Ele sorriu-me e recostou-se na sua cadeira de baloiço, e perguntou com uma firmeza de voz, que me fez ter um arrepio:
-- Tens paciência pra escutar um pobre velho?
-- Tenho avô. E não penso que seja pobre, tem uma rica experiência de vida! E quanto a velho, isso é apenas uma questão de tempo.
Ele sorriu-me afectuoso, quase grato e começou a contar o seu segredo:
-- O meu segredo então?... Acho que foi a descoberta do amor. Do amor mais despojado, mais intenso, mais arrebatador que já vivi... amor divino!
Fiquei preso na expectativa da revelação. Via no brilhar dos seus olhos agora meio-baços da idade que havia fogo nas palavras. E ele continuou:
-- Sabes, não conheci os meus pais. Sou orfão, não sei bem se por acidente, se por vontade. Nunca me disseram e fizeram bem. Cresci sem essa agonia pelo menos. Desde novo, fui recolhido num orfanato, e conheci muitas pessoas, umas boas, outras más...
Ás vezes parava para tomar fôlego, como se estivesse ofegante de contar o seu segredo, antes que a morte viesse sorrateira apagá-lo de todas as memórias.
-- Como calculas, quem vive num orfanato, não pode dizer verdadeiramente que foi amado. Há sempre uma falha uma carência qualquer... Eu era bom aluno, aprendia bem! Talvez fosse porque isso me trouxesse um carinho adicional, não sei... Talvez fizesse com que outros gostassem de mim...
Deu um suspiro, que na altura não compreendi.
-- Devia ter os meus 16 anos, ou talvez 17... Sabes... Ela era a freira mais doce, de rosto mais belo e angelical que alguma vez vi... Apaixonei-me! Apaixonei-me loucamente... Mas nunca o confessei abertamente a ninguém. Escrevi-lhe poesias românticas que guardava escondidas na minha Bíblia...
Ele entrecortava a narração com sorrisos e olhares no vazio. Percebi que a recordação lhe trazia lembranças agradáveis e não interrompi.
-- Queriam que eu fosse padre... E sentia-me tentado a sê-lo. Servir a Deus! A minha amada fazia o mesmo, e com quanta abnegação e desvelo. Quando estavamos doentes, ou tristes, ela sempre tinha um sorriso, uma festa, um carinho para nós. Ela é um anjo, daqueles que Nosso Senhor ás vezes deixa vir á Terra apenas para tornar as nossas vidas menos fúteis...
Parou e olhou pra as suas próprias m6atilde;os no regaço, e vi-lhe uma lágrima. Ía para dizer alguma coisa, mas ele limpou a lágrima com as costas da mão e continuou:
-- Um dia, parti os braços quando caí de uma escada... Andava a pintar os muros do orfanato e nem sei como... catrapumba! Acho que foi o bom Deus, na sua extrema bondade...
Nunca consegui perceber como alguém pode achar Deus na desgraça, mas o avô estava prestes a ajudar-me a perceber.
-- Fiquei na enfermaria... E quem tive a ventura de ficar de serviço nesse domigo maravilhoso? A irmã Alma! Eu tava na cama sózinho, naquele domingo houve uma excursão, e a irmã Alma ofereceu-se pra ficar comigo. Depois pegou na minha Bíblia, não a pude impedir! E ela... encontrou os meus poemas para ela! Vi-a ler, elogiar os meus poemas... Até declamou alguns na sua voz doce, como a voz dos anjos...E depois ela percebeu... Que todos aqules poemas magníficos, como ela disse... eram todos para ela!
Fez uma pausa longa, num sorriso enorme que percebi era de saudade, apenas saudade... ou talvez mais alguma coisa, mas nem me atrevi a respirar, com medo que se calasse.
-- E sabes o que ela fez? Eu não pude fazer nada... Ela despiu-se... Tinha o corpo mais lindo que eu já vi em toda a minha vida!
Os olhos cintilavam-lhe como duas estrelas. E continuou como se tivesse rejuvenescido:
-- Depois tirou a roupa de cima de mim... Sim, não fiques chocado, mas fizemos amor durante o resto do dia... Foi a melhor coisa que me aconteceu em toda a minha vida! Descobri o amor em toda a sua plenutide! Na entrega mais volutariosa, mais despojada de todas! A irmã Alma fez-me acreditar que Deus existe e que se importa realmente connosco!
Falava de uma maneira exaltada, com entusiasmo, até tive medo que lhe desse um ataque, mas depois ele serenou.
-- Nunca mais a vi... Sei que ela foi destacada para outra missão. E sei que Deus na sua justiça lhe deu o melhor lugar que há no céu. Porque ela merece inteiramente esse lugar. A doce irmã Alma...
E dizendo estas palavras, o seu olhar ficou parado olhando o céu.

O Mestre


sobre amores, desamores, vontades e á vontade...
O Mestre desaparecera. Imaginámos que bandos rivais o tivessem raptado, invejosos da sua sabedoria e que estariam agora a torturá-lo num qualquer pardieiro abandonado. Mas depois de algumas diligências e de cobrar favores consegui descobrir o paradeiro do Mestre. Estava numa praia, e era má época, pois estavamos no Inverno, mas decidi ir ter com ele. Estava receoso, mas ele ao ver-me sorriu e convidou-me a dar uma volta na praia. Estava um vento terrível e apesar da roupa a areia batia nas pernas como canivetes. O Mestre parecia divertir-se com aquilo.
-- Sim, adoro o vento, o cheiro a maresia e esta dor finíssima, aguda, nas pernas!
Pensei que o nosso Mestre endoidara, mas com ele era sempre de esperar revelações abruptas. Por isso decidi puxar por ele:
-- Mestre, alguma razão para vires para aqui?
-- Há.
-- Qual?
-- O medo.
Nunca me apercebera que o Mestre tivesse medo fosse do que fosse.
-- Como assim, Mestre?
O Mestre deu uma gargalhada que rivalizou com a rebentação das ondas, e quase fui tentado a dizer que endoidara mesmo. Mas ele continuou:
-- Todos fugimos da dor. Temos medo de sentir dor. É instintivo! Mas será que queremos ficar-nos pelo instinto? E fugir de alguma coisa acaso é solução? Esta dor fina nas pernas é uma bênção. Não sentes?
-- Não, Mestre... -- disse de repente sem pensar. Achava aquele vento que levantava a areia e ma atirava como chicotes ás pernas através da roupa, era mais uma espécie de tortura. Será que o Mestre sofria de dem6ecirc;ncia senil?
-- Pois... Percebo que para ti seja difícil entender. Não estás preparado. Mas talvez entendas se eu te disser de outra forma: Porque é que quando sofremos um desgosto de amor, ainda assim não dizemos mal do amor, mas procuramos nova tentativa, ou pelo menos ansiamos que da próxima seja diferente, tenhamos sorte?
-- Não sei Mestre.
-- Porque a dor que vem do desamor é boa! Recorda-nos que estamos vivos! Só a dor é real!
-- Como assim?
-- Os anglo-saxões são lutadores. Eles afirmam na sua filosofia de vida o poder soberano da vontade, são sobreviventes! Procuram ignorar a dor quando ela vem e julgam que isso lhe traz vantagem! Por isso são 'frios' quase insensíveis e as suas relações amorosas frágeis e menos intensas. E quando são intensas, são doentias. Mas só a dor é real!
Não conseguia acompanhar o Mestre, mas ele parecia entusiasmado e deixei-o continuar.
-- Os amores, os desamores, tudo isso apenas trás dor! Mesmo quando encontramos alguém que amamos muito e nos correponde, vem a dor do medo de a perder! Quando amamos quem não corresponde, fica a dor de não ser correspondido. Mas afinal o que permanece? O que é constante? O que atravessa a nossa vida de uma ponta á outra? A dor! A dor é a essência da vida!
O Mestre olhou para mim, e deve ter visto o espanto estampado na minha face, por isso quase concluiu:
-- Essa é a revelação da areia a bater-te nas pernas!
Pensei que sim, talvez fosse, sim agora percebia! Sabia bem sim, aquela dorzinha aguda nas pernas, como alfinetadas, eram a prova de que eu estava vivo!
Sorri para o Mestre, podia aprender, agora estava á vontade.

05 dezembro 2003

Theo Logias


O império atravessava dias negros, e o Imperador receoso de que o cosmos desmorona-se procurava conselhos em todos os pontos da galáxia! Foi assim que ouvimos falar de Theo Logias, um homem que vivia numa velha estação espacial, convertida num rádio-farol junto á cintura de asteróides do Sistema Solar XV24. Era um local perigoso e raramente alguém ía até lá. Também não se pusera um rádio-farol ali apenas para decorar!
Corria a fama de que Theo Logias falava com o Deus Criador, o que tivera a ideia do Universo e por conseguinte nos originara a todos. O Imperador pensou que para os tempos negros que se atravessavam era um recurso que não se podia desperdiçar. Ordenou que o trouxessem, se o homem quisesse vir, porque queria saber o que devia fazer para evitar que tudo caísse nas trevas. O General Vladimir foi com as suas naves, e não voltou. Soubemos que se despedaçara num dos muitos asteróides á volta da estação espacial. Depois foi o Embaixador Ritto, também não voltou, um asteróide do tamanho de um punho bateu num dos depósitos de oxigénio e este explodiu. Diziam que tinham sido insolentes com Theo Logias, e que Deus os castigara. Não me admirava que tivessem sido insolentes, mas não acreditava que Deus os tivesse matado.
Ofereci-me para ir, e o Imperador dispensou-me das minhas funções no palácio.
O Sistema Solar XV24 fica longe de tudo e era um um sistema solar sem graça, como se fosse uma coisa simples e discreta no meio do cosmos, sem chamar á atenção. Pareceu-lhe adequado que assim fosse. Pediu permissão para aportar na estação espacial, onde estava instalado o rádio-farol.
-- Para que quer aportar? -- perguntaram de lá.
-- Pretendo falar com o Sr. Theo Logias.
-- E quem pretende falar com ele?
-- Um homem, apenas um homem...
Houve um longo silêncio, e depois a voz no rádio disse:
-- Muito bem, pode aportar. Porto Z01... e tenha cuidado com os malditos asteróides! É que nas operações de aportagem não podemos ligar os lasers para os destruir, estão por vossa conta!
-- Ok! Obrigado.
Chegámos até ao Porto Z01 naquelas estação espacial de 300kms de comprimento. Era um mundo em miniatura, e devia ter não mais de 2 milhões de habitantes. Era uma espécie de comunidade, há semelhança dos antigos mosteiros na Terra. Só que aqui vivam ambos os sexos. Diziam todos que o seu mentor era Theo Logias, mas nunca o tinham feito líder de coisa nenhuma. Teoricamente o Sistema Solar XV24 era súbdito do Imperador, mas ali, naquele longínquo lugar do espaço, o Sistema Solar era uma comunidade autónoma. Muito autónoma, sem governador ou comandante.
Um responsável do porto aproximou-se dele:
-- Bem-vindo!
-- Obrigado. Gostava de falar com o Sr. Theo Logias, seria possível?
O homem riu-se e encaminhou-o:
-- Ao menos o Sr, não exige falar com Theo Logias! Pergunta se é possível... Muito bem. O que faz?
-- Eu? Procuro o meu lugar no mundo... Mas no entretanto, trabalho para o Imperador...
O homem sorriu:
-- Não há muita gente á procura do seu lugar no mundo, acham que já têm um lugar e acomodam-se. Seja quem for Senhor, gosto da sua atitude e desejo que encontre o seu lugar.
-- Obrigado.
Tínhamos avançado até um pequeno veículo onde fui convidado a entrar, e onde ao fim de cerca de 15 minutos parámos no que me pareceu uma área residencial.
-- Theo Logias espera-o. Bata nessa porta... -- disse apontando uma porta de madeira. E foi-se embora.
Ficou a olhar a porta, há quanto tempo não via uma porta de madeira. Gostou daquela porta e bateu, como o homem dissera e ao bater a porta abriu-se... Estivera sempre aberta. Lá dentro havia uma luz suave, e havia um cheiro agradável, familiar, mas que não conseguiu definir muito bem.
Um homem desenvolto de cabelos brancos bem aparados sorria-lhe sentado a uma mesa simples.
-- Entre, não tenha receio. Sou Theo Logias e o Sr?
-- Obrigado por me receber, espero não incomodar...
-- Ora, uma visita nunca é um incómodo é um prazer!
-- Não sei bem se a minha presença deva ser encarada como uma visita...
-- Sim, eu sei, o Imperador mandou-o.
-- Não Sr. Theo, eu ofereci-me para vir.
-- Ainda não me disse o seu nome...
Fiquei pensativo, se o meu nome teria importância, se eu faria alguma diferença no caldeirão gigantesco do Universo.
-- Abakuk. Mas o meu nome não tem importância. Se calhar nenhum de nós tem importância...
Theo Logias sorriu-me:
-- De facto o Imperador mandou o homem certo!
-- Já lhe disse que o Imperador não me mandou, fui eu que me ofereci.
-- Mesmo assim. Sabe por que morreram os outros que vieram antes de si?
-- Há quem diga que Deus os matou, porque foram insolentes consigo.
O homem deu uma gargalhada e perguntou:
-- E o que acha Abakuk?
-- Acho que Deus teria muita gente para matar, se quisesse acabar com a insolência.
O homem sorriu e disse:
-- Tem razão amigo, tem razão. Não, não foi Deus quem os matou. Foram eles que na sua arrogância se mataram. Excesso de confiança! Aqui em XV24 isso é quase sempre mortal. Os asteróides não perdoam! Não foi por nada que puseram aqui o rádio-farol. Os que vieram antes de si, estavam cheios de pressa. Exigentes, arrogantes. Foi pena...
-- Talvez estivessem apenas com pressa... -- arrisquei.
-- Não amigo Abakuk. Queriam que eu lhes desse uma reputação. Que fizesse deles uns heróis aos olhos de alguém. Você não veio por isso.
-- Pois não...
-- Porque veio amigo Abakuk?
-- Dizem que fala com Deus...
-- Sim, e quer que eu fale com Ele, por si?
Baixei a cabeça, e depois olhei-o nos olhos:
-- Por mim? Não sou assim tão importante Sr. Theo, mas gostaria de descobrir se há um sentido nas coisas percebe? Se a vida tem sentido, se não é apenas um desperdício, um acaso, um acontecimento fortuito, como o nascer e morrer das estrelas, como se fosse um produto secundário, tal como os planetas...
-- Compreendo... E o que lhe parece?
-- Eu gosto de viver. Mesmo que o Império se torne cada vez mais negro, acho que viver ainda vale a pena. Preferia que fosse melhor, que fosse diferente, mas...
-- Quere saber o que optar, que caminho seguir, que escolhas, não é?
-- Acho que é isso, sim. Mas estou disposto a considerar outras coisas...
-- Incluindo a resposta para o Imperador?
-- Também isso, sim.
-- Apesar de tudo amigo, no fim o que conta mesmo são as nossas opções. Eu limito-me a transmitir o que Deus me transmite, não sou eu o originador da mensagem. Deus diz-nos as coisas e depois deixa que façamos as nossas opções, mesmo quando nos diz o que devíamos fazer, entende?
-- Creio que entendo...
-- Mas uma coisa é certa, Deus sempre acaba conseguindo o seu objectivo. Não há que ter medo, apenas confiar. Confia Nele?
Sorri:
-- Isso significa confiar em si, não é?
-- Um pouco. Mas posso dar-lhe um selo de garantia, de que o que digo vem Dele.
-- Como?
-- Digo-lhe que depois de lhe dizer a mensagem que deve transmitir de viva voz ao Imperador, passará a cintura de asteróides sem que mal nenhum lhe aconteça. É suficiente?
Sorri de novo:
-- Pelo menos garante-me que saio daqui com vida ao contrário dos outros. Mas também a minha vida não é o importante...
-- Tem razão. Mas ás vezes dizemos as coisas, sem percebermos bem a amplitude do que dizemos.
Estava a demorar ali. A conversa parecia não levar a lado nenhum, apenas andavamos em círculos e continuava sem nenhuma resposta. Talvez me tivesse enganado...
-- Podeis dizer-me a mensagem que devo transmitir ao Imperador?
-- Claro! A mensagem é esta e terá que ser você a dizê-la de viva voz, em plena sala do trono, perante todos...
Sentiu medo, sem perceber bem ainda porquê. E Theo Logias repetia:
-- "Abdica do trono em meu favor! É a única maneira de salvares o Império e a tua vida."
Um arrepio gelado percorreu todo o seu corpo.
-- Percebeste? -- perguntou Theo Logias segurando-lhe na mão.
-- Percebi... -- murmurei.
-- Agora vai...E confia!
Não se lembrava de como saíra da estação espacial, mas diziam os seus homens que os asteróides pareciam fugir á sua passagem. Na nave principal em que agora regressavam, pensava nas suas opções.
O Universo era um malho gigantesco a bater na sua cabeça.

04 dezembro 2003

Sem que o vento sopre a ferida


ave voando
Peguei no livro ao caso e desfolhei as páginas. Mas não me apeteceu ler e olhei o mar que se tingia de dourado num pôr-de-sol magnífico. Magoava-me mas não consegui deixar de olhar. Magoava-me a tua ausência, e de não poder partilhar a beleza do mundo contigo. Estavas distante, na distância que nos separava e também na situação. Agora eu estava livre e tu não.
Como sarar a dor que se me abria no peito? Essa ferida uqe latejava, toda ela feita da tua ausência? Como poderia resistir? Tudo o que era belo no mundo trazia a tua recordação, e a tristeza lembrava-me o teu consolo! A vida tinha destas coisas, de se transformar num inferno, quando o único pecado era amar!
Fui passear pela praia e deixei o livro no banco do passageiro... No que te pertencia por direito, e também ele me lembrava que estavas ausente. Era um espaço vazio com reserva, como as mesas dos restaurantes com marcação. Até essas coisas simples, como comer, me lembravam de ti, do teu prato preferido, do teu jeito de pegar no talher ou saborear algo. Quem dera que eu pudesse ser o teu sangue, e que eu circulasse nas tuas veias... Decidi andar pela praia, e logo que pus lá os pés, lembrei-me do teu corpo...
Deixei as pegadas na praia deserta, na esperança que as seguisses. Olhei o mar violento e espumante, com uma força que senti de raiva, de raiva por não estares! Ou talvez fosse ele a minha voz a clamar por ti.
Deixei que o vento soprasse no meu rosto, tanto quanto quisesse, e nem ele na sua boa vontade conseguiu soprar a ferida...

03 dezembro 2003

LOVE REMOVAL MACHINE


ave voando
Entrevista com o grande inventor Prof. Nero

-- Caro Prof. Nero é uma honra tê-lo de novo entre nós! Depois do sucesso que teve o seu ORGASMOTRON, quer falar-nos desta sua nova máquina? O nome parece-me estranho...
-- Para mim é igualmente um prazer falar-vos desta nova invenção...
-- Parece-me muito radical, essa máquina tira o amor de nós Prof?
-- Não amigo, não é tão radical assim! Seria traumático e doloroso que fossemos privados desse sentimento tão básico e tão necessário. Já há amor de menos para que o objectivo das nossas pesquisas fosse uma máquina que ainda o diminuisse mais! Nada disso...
-- Então Prof? O que faz a sua L.R.M.?
-- Pelos nossos estudos chegamos à conclusão que o suicídio juvenil resulta muitas vezes de desgostos de amor! Ora é um drama que em idades tão tenras, se abdique de viver só aos primeiros e rudes golpes do amor!
-- Então a sua máquina Prof, combate esse flagelo! Como?
-- Pois, o ORGASMOTRON, mostrou-nos como desenhar máquinas que geram emoções, perseguindo essa via, inventamos uma que faz precisamente o inverso! Esta máquina retira da nossa memória a dor do desgosto de amor, deixando apenas uma melancolia residual. Digamos que não atenua, apenas amortece essa dor, transportando a experiência dolorosa, apenas numa experiência suportávelmente dolorosa...
-- Quer dizer que se eu apanhar um tampo daqueles, vou à sua máquina e limpo o 'cadastro' Prof?
-- Basicamente podemos dizer que sim...
-- Mas o Prof, acredita que as pessoas terão coragem de usar a máquina? Afinal quando estamos doridos, nem nos lembramos de recorrer a nada!
-- Bom, isso depende um pouco da forma como nos prepararmos de antemão. Mas pense na máquina apenas nessa perpectiva... Se pensar bem esta máquina dará um novo alento a todos aqueles que de tão traumatizados, fogem instintivamente do amor, têm medo que este os possa magoar e fecham-se, não mais arriscam partir na sua busca pela felicidade. E condenam-se a mais das vezes a vidas tristes e cinzentas. Com esta máquina podem partir de novo, aventurar-se à descoberta do amor...
-- Mas correm o risco de se magoarem outra vez Prof...
-- De certo que sim, a vida é mesmo assim, mas agora podem partir seguros de que o dano não será permanente...
-- Mas se squecem a dor, podem estar condenados a multiplicarem-na Prof.!
-- Não! A máquina não provoca esquecimento! Apenas atenua a dor, para um nível psicologicamente suportável, o que servirá de aprendizagem também.
-- Professor, tenho de lhe declarar a minha admiração pelo seu trabalho! Sabendo como há individuos que gastam tão inutilmente as suas células cinzentas! O Prof. tem-nos maravilhado com máquinas que primam pela utilidade. Em meu nome caro Prof, queira aceitar os meus mais sinceros agradecimentos!
-- Ora eu é que agradeço a sua disponibilidade em divulgar os meus inventos...

02 dezembro 2003

Velhice


Foi só quando bateu com a cabeça na viga, tarde demais, que compreendeu que as coisas não estavam iguais! Sim agora dava conta de distrações bacocas a meterem-se de permeio e a dar-lhe cabo da vida, naquele caso da careca, agora com um bruto lenho.
ave voandoPraguejou o tempo devido para fazer efeito e sentir-se em condições de chamara mulher que como é típico das mulheres se mostrou preocupada.
-- Mas tens aí um lenho!
-- Isso sei eu carago! -- Eram ainda os restos do praguejar. -- Vê mas é se me desinfectas isto.
Lá foi a mulher pressurosa encontrar a água oxigenada, que para seu mal também se fez difícil, e só apareceu depois de alguma luta.
De facto notava que a vida não corria com a mesma ligeireza de antigamente, e sentiu-se incomodado com o facto. Não sabia se havia de culpar os tempos, que o desatinavam, ou o seu próprio tempo! Possivelmente era as duas coisas, numa conclusão de consenso.
Mas a realidade, é que os anos começavam a querer cobrar o seu tributo. Sentia um amargo de boca, agora que começava a compreender melhor o seu próximo, a ganhar enfim, alguma sabedoria, é que a vida decidia brincar com ele! Não havia muito a fazer...
A mulher desinfectou-lhe a cabeça, agora tinha uma cicatriz de guerra! Subira ao sotão para examinar donde viriam as manchas de humidade no corredor, e tivera dois azares: O primeiro uma fuga numa das emendas dos tubos de água, a segunda uma bela cabeçada na viga. Se o primeiro azar era uma contingência de ter casa, o segundo devia-se certamente a si próprio e às suas faculdades nitidamente em perda.
Via-se como os reformados da terra, à procura do banco de jardim mais soalheiro, um boné enfiado na careca e conversas da treta. Recitando conquistas heróicas de tempos passados, ou dizendo que 'Dantes é que era bom!' Quando a memória já esqueceu tanto, que possivelmente só fica o que foi bom, nessa arte que o nosso corpo tem de ser mais inteligente do que nós.
Era velhice!

01 dezembro 2003

Droga


Escrevia como outros bebiam, ou fornicavam. era uma droga. Um escape do labirinto interior que se atafulha com vivências sentidas de todos os modos errados. Como um rato no labirinto tentando aprender o caminho da saí­da. A única forma de sair deste, é deitado com os pés juntos.
Procurando nas suas memórias os sentimentos, cristalizava-os em palavras com nenhum sentido, ou com todos, tudo dependia da ressaca. Descobria que a sua intelectualidade provinha do seu amor pela dor, por isso era negra a sua escrita, mais negra do que os caracteres que se alinhavam disciplinados na tela em branco. Era uma escrita de amargura, tão dolorosa quanto uma prostituição forçada, por causa do ví­cio da droga. A sua droga era tão abjecta quanto todass demais podem ser. Era uma violação de si mesmo, um rasgar em dor, uma dor que por ser tudo o que achava que tinha, se tornara num hábito masoquista.
Como se houvesse prazer no sofrer, como se o misticismo da vida se transubstanciasse naquela dor da escrita em puro prazer. Era um trapo, um resto dos seus restos, que ainda respirava, arfando em palavras de vento.
Parecia-lhe outra vez sem sentido, como se a vida fosse uma mera futilidade. E achava que todos estavam igualmente condenados!
Não havia qualquer saí­da. Era um bêbado de vida, e vivia para esquecer o que a vida era, nessa agonia de se enfrentar a si mesmo todos os dias, e não gostar do que via!
Para onde rumar? Que outro 'eu' construir, senão sabia como tinha chegado ali, ou ainda mais importante, não sabia como escapar do labirinto, onde como o rato o deixaram à procura da saí­da. Talvez um rato tivesse ainda mais sentido do que ele. Escrever era por isso o único sentido que lhe restava, como o naufrago que na ilha deserta lança mensagens ao mar, na esperança de um dia...
E os dias passavam iguais ou piores, e a cada um que passava, escrever-lhe custava-lhe cada vez mais. A droga precisava aumentar de dose, ou descobrir outra mais forte!
Seule- Touluse Lautrec
Mas que outra haveria, para além da dor? A dor redimia-o de todas as asneiras, de todas as futilidades, eram como o castigo que paga a dí­vida! Mas como pagar a dí­vida de viver? Que castigo seria suficiente?
Tentou escrever mais um pouco... E nada saí­a, como se o tormento devesse refinar-se.
Tinha inveja dos que caiem de bêbados julgando que estão de pé, ou dos que têm sorte e afogam as angústias entre as pernas profiláticas de uma mulher terapeutica!

Nada de nada


abstracto azul
Enrugava-se a barba, quando falava de quase nada. Era a beira-do-mar salgado sem água nenhuma, nem peixes. Era um deserto salgado, onde as vacas lambiam o chão. Era um mundo em lugar nenhum, sem sentido, a não ser o de existir. A palavra mais ouvida ali era o silêncio do ranger dos portais que se abriam para lugar nenhum, num vazio que só a imaginação podia preencher. Onde se arrastavam as sombras dos que já não existiam, como se de mera impressões se tratasse. Figuras de luz, na ausencia dela, entre espaço-tempo que existia apenas na dimensão dos sonhos.
Era como escrever sobre coisa nenhuma, dando a impressão de escrever sobre alguma coisa.

29 novembro 2003

Nas asas da liberdade


A esposa morrera, nem há uma semana. Uma morte lenta de cancro, que o prepara para a dor maior de ficar definitivamente sem ela. Durante todo o tempo em que agonizava, não fora dispensado das suas funções de Presidente do Conselho de Administração da grande corporação. Era materialmente rico, mas vazio por dentro agora que ela se fora. Ela tinha sido a sua espiritualidade, buscara consolo na Bíblia, á medida que a vida lentamente a sufocava. Ela lera-lhe inúmeras passsagens, quisera que ele acreditasse como ela que vida recomeçaria num novo mundo maravilhoso.
Tudo o que recomeçava era a obrigação do continuar dos dias. Sem descanso, sem paragens, sem interrupções. O Faraó era a corporação.
-- Sr. Presidente, precisa de assinar o contrato de exploração de petróleo...
-- Deixe ficar... -- disse ele, recuando para dentro de si. Aquele contratou estava manchado de sangue. Era finaceiramente um bom contrato.
-- Também lhe trouxe o plano de reestruturação da empresa têxtil que adquirimos ontem...
E ele viu-se a pensar o que significava reestruturação: despedimentos, milhares de famílias afectadas numa espécie de bola de neve. Sabia que aquela empresa era a maior empregadora da região. A empresa seria deslocalizada e a região seria condenada á desertificação humana. As mãos tremeram-lhe. Lembrou-se da esposa, quando lhe falou do Faraó, que este dissera aos judeus escravizados que fizessem tijolos e arranjassem também a palha.
-- Deixe ficar também... -- pediu ele á secretária.
A secretária pareceu indecisa, mas arriscou:
-- Tem aqui também aquele projecto imobiliário...
Ele sorriu-lhe:
-- Deixe em cima da secretária, por favor...
O projecto era um ressort turistico para abastados como ele. Mesmo ao lado havia milhares de pobres, que apenas se contentariam se tivessem o suficiente para comer todos os dias! Lembrava-se de que as terras onde seria construído o ressort, eram terrenos baldios de que um político corrupto se apropriara e que lhe vendera, por um preço razoável. Aquele ressort era construído sobre cadáveres. Sentiu-se mal do estomâgo, com uma vontade de vomitar e foi até ao WC do andar. Tinha o seu próprio WC privado, mas sentiu necessidade de andar.
Entrou no WC, e fechou-se no cubículo da sanita. Entruo alguém e ouviu sem querer:
-- Depois da morte da esposa, o Presidente não é o mesmo! Perdeu a garra!
O interlocutor disse.
-- Acreditas que será destituído na próxima Assembléia Geral de accionistas?
-- Talvez... Os contratos acumulam-se na secretária dele, parece adiar indefinidamente as decisões, estamos a perder milhões...
Riu-se por dentro! O grande deus Mamon tinha inúmeors seguidores! Achavamos repugnante nos tempos antigos os sacrificios humanos, contudo pelo dinheiro, eramos capazes de fazer todos os sacrifícios humanos que fossem necessários. Até ele, por paradoxal, se sentia mais um.
Lembrou-se da esposa, de como Deus amorosamente enviara um homem, para libertar todos os escravos de Faraó. Com que mão forte os tirara daquele jugo pesado. Queria ser liberto, mas não acreditava em Deus ou melhor, parecia-lhe que Deus deixara de acreditar nos homens, que estes fossem capazes de qualquer bondade digna de nota. Por isso, Deus deixara a humanidade entregue a si própria, até se transformarem numa monstruosidade.
Sentiu uma angustia dolorosa invadir-lhe o peito. Uma saudade a ferrar-lhe por dentro. Sentiu-se preso, amordaçado nos seus sentimentos mais puros e generosos, manietado. Queria ser livre! Queria acreditar que existe Deus, e que este se importa, que faria qualquer coisa que o libertasse! ave voando
Voltou ao seu escritório, ao seu gabinete belamente decorado. O Faraó vivia em luxo e concedia-lhe parte dele. Sentiu nojo de tudo aquilo, que se construira na desgraça de milhares de outros, no sangue de irmãos. Pois como contava a Bíblia todos viemos da mesma costela. Olhou para fora, pelas grandes janelas do topo do edificio, que mais alto que os outros todos, como uma piramede simbolizava o domínio, o poderio, sobre os outros!
Sentiu um sufoco, que não era apenas da alma, mas de ar também e abriu a janela!
O vento entrou livre e forte e espalhou os contratos todos sobre a sua secretária, pelo meio do chão. Só havia uma saída, daquela gaiola dourada. Subiu no parapeito da janela. Queria a sua amada esposa! Queria ser livre! E acreditou que podia ao menos, ser pássaro! Abriu as asas, e voou...

28 novembro 2003

Conversa Perfeita


Juntavamo-nos ao fim do dia naquela mesa de café. Era um hábito, e foi por acidente que nos vimos entretidos a discutir os problemas do mundo e a opinar soluções. Sim, tínhamos passado a fase da maledicência e subido o nobre patamar de propor soluções.
Ao ouvir-nos estavamos certos de sermos capazes de salvar o mundo. Mas as nossas ideias não passavam daquela mesa de café. Essas conversas eram a droga das nossas boas intensões, como o café que nos espevitava o suficente para não dormirmos do jeito que dorme toda a gente: apáticos perante o que vai acontecendo.
Sim, parece um facto consumado que os dias de hoje, são feitos de modo a que ninguém pense! Pensar é um acto subversivo que deve ser reprimido a todo o custo. Os 'intelectuais' e esta palavra ganhou um cunho pejorativo, quase de insulto, é que pensam. 'Nós' os cidadãos não pensamos, trabalhamos! Infelizmente o trabalho é um bem cada vez mais escasso. O desemprego e a reforma eliminavam os empregos.
Tínhamos planos para resolver tudo isso! Mas o que é que não eramos capazes de resolver á mesa mágica daquele café! Tínhamos mesmo a forte suspeita, de que aquele local era mágico, e nem tomavamos café, a não ser exactamente ali, naquele canto sacralizado!
-- Então qual vai ser o tema de hoje?
-- Ó pá, hoje não me consigo concentrar... Viste a merda do jogo?
-- Ó carago, ainda bem que não sou do teu clube! Deitava-me a afogar, carago!
A conversa era acentuada por palavras que em nada contribuiam para a solução do problema mas que nos esvaziavam da raiva, ou da frustração e da impotência. Abençoada a mente que inventou na linguagem o impropério e a palavra obscena; ou dito de outra forma: a asneira!
A asneira sublima a escória das nossas revoltas, dá-lhe um escape sem violência física.
-- E esta guerra pelo petróleo? Dizem os gajos que é contra o terrorismo!
-- Pilhagem! Esses filhos-da-puta, são uns ladrões!
E a conversa continuava interminável. Pelo menos tínhamos tema todos os dias!
-- Olha que os gajos num combatem a fome! Pra isso não mobilizam eles meios! E se fosse por falta de alimentos, ou secas ou o carago! É por puro desleixo! Egoísmo!
E vivíamos as nossas confortáveis vidas de pantufas. Eramos todos demasiado velhos para militar nalguma organização terrorista. E a vida ensinara-nos que as revoluções têm a curiosa tendência de voltarem atrás no tempo, e deixarem as coisas ficarem da mesma maneira! Não era com revoluções que se mudava coisa nenhuma. Era com ideias, mudança de mentalidades!
E partíamos num fervor quase apostólico a convencer os outros que precisavam começar a pensar! Mas retornavamos derrotados áquela mesa de café, vencidos por telenovelas, futebol e chatices quotidianas.
-- Ó pá, agora aquela gaja tem cá um par de mamas! -- dizia alguém a respeito de uma actriz numa telenovela qualquer.
-- Xi, é podre de boa a gaja! Ai se eu fosse mais novo!
-- Se fosses mais novo, como é que te encontravas com a gaja? És mas é parvo!
mulherA maior parte das vezes, o tema eram mulheres, em especial mulheres novas, de corpos ainda não deformados pela idade. Esquecíamo-nos dos nossos corpos moles e envelhecidos e pensavamos ainda como se a eterna juventude fosse um dado adquirido. Mulheres era um tema recorrente que se discutia com empenho, ardorosamente, e em que regra geral havia o mais elevado consenso. Talvez fosse esse o tema de uma conversa perfeita.

26 novembro 2003

"Não há soluções, apenas opções." -- in Solaris de Stanislaw Lem


A realidade é feita de mentiras, que repetimos com um fervor piedoso, religioso. Máximas que nos ensinaram como se fossem pérolas de sabedoria e já não são. Os tempos mudaram, e atiraram-nos para um vazio, de tédio, de apatia.
Temos medo, todos os medos, medo da doença, da conhecida e da desconhecida. Medo do futuro, porque nenhum parece provável, nesta era de suprema incerteza! Medo da vida, que parece errática e sem sentido. Medo da morte, porque não dá nenhuma alternativa. Medo do sexo, porque é sem amor! Medo do amor, porque nunca sabemos se é mesmo pra valer desta vez. Medo do trabalho por que é demais e mal pago. Medo do desemprego, porque tira a dignidade e o sustento. Temos até medo de ter medo, porque é ser fraco!
E temos razão para o medo, todas as razões. A fome aumenta no mundo. Os ricos estão cada vez mais ricos. Os pobres mais pobres. E os que estão no meio têm medo de se tornarem pobres e vão atrás de ilusões proclamadas por políticos. Mas como alguém disse:
-- Não há soluções, apenas opções.
Qual é a tua? Ou desististe de pensar, nesta letargia alimentada por quem te suga aos poucos até ao tutâno?
Nesta matriz, romperás as grilhetas da escravidão ao sistema, ou dentro do sistema serás o grão de areia? Lembra-te:
-- Não há soluções, apenas opções.
Salmodearás outra vez os lugares batidos do bom senso? Um bom senso colocado no lugar da canção de embalar, para te enganar com a ideia que tudo tem de ser assim. Mas porque tem de ser deste modo? Porque tem de ser tão injusto, com as mortes transmitidas em directo? Refastelados nos sofás, ainda estamos com os pães quentes. Condoemo-nos da desgraça alheia? Ou é apenas mais um filme, que já nem acorda em nós a indignição? Que vais fazer? Dormir descansado esta noite, que já tens preocupações em demasia? Que preocupações são as tuas? Levantar cedo amanhã, para repetires gestos quotidianos até ao exaurir dos teus dias? E morrerás feliz? Não te parece demasiado patético? Nunca te perguntaste porquê? Se pensaste arrumaste o pensamento num lugar escuro, profundo, donde não pudesse voltar, porque é incomoda a resposta! Pensar tornou-se nojento, nesta sociedade de ratos amestrados!
'Tem de ser assim!' Mas porque tem de ser assim? E depois quem pensa leva um rótulo e trocam-se olhares trocistas e superiores. Não, não falo dessa intelectualidade banal, formulada em mesas de café, tipo tertúlia. Não falo de blogs. Falo de pensar para tomar opções, pois não se deve esquecer que:
-- Não há soluções, apenas opções.

25 novembro 2003

Sempre que um homem quiser!


A colónia penal de Talus era um calhau inóspito perfeito para mentes frágeis terem alucinações, e infelizmente o que não faltava em Talus eram mentes frágeis! Toda a escumalha da galáxia era lançada em Talus, alguns para o resto das suas tortuosas vidas. Não havia qualquer preocupação de recuperar estes restos de humanidade, sim restos, diví­amos até dizer escória da humanidade. Os que eram lançados em Talus, era como se os lançassem vivos numa espécie de tumba, da qual dificilmente sairiam, se é que saíriam!
Os guardas prisionais, tinham sido recrutados de entre os mais calmos e bem-comportados presos, mas em abono da verdade, não havia necessidade de guardas prisionais. Talus era uma colónia penal inóspita, que nem era sequer auto-suficiente em questão alimentar. Um dia as naves de abstecimento estiveram em greve por cerca de 15 dias e a população de Talus ía sendo dizímada pela fome!
Por isso, os prisioneiros faziam por se portar bem, perante um director prisional que era afinal um político corrupto que tinha tido a má sorte de ter sido apanhado num escândalo sexual envolvendo pedofilia e tinha sido desterrado para ali. As autoridades nomearam-no autoridade suprema em Talus. Em Talus não havia democracia. Tudo era uma preocupação de sobrevivência, ás vezes nem isso, que a taxa de suicídios andava em 10/1.000 residentes. Não havia alas para os diferentes sexos. Os condenados eram largados em Talus e esperava-se que ou se acomodassem o melhor que podiam, ou morressem depressa. Apesar dos poucos motivos para viver em Talus, ainda assim os residentes faziam o melhor que podiam!
Talus era um globo de gelo, e a única forma de sobreviver era nas galerias subterrâneas. No Verão a temperatura subia para uns amenos 4ºC e era a ocasião em que todos aproveitavam para fazer pic-nics.
Foi neste lugar de fim-de-mundo que começaram a surgir acontecimentos estranhos. Num dos Verões Luigi Campino e o seu eterno companheiro Jorge Valente, tiveram uma das primeiras visões, das muitas que depois surgiram.
-- Juramo-vos que encontramos Deus! -- Dizia veemente Luigi juntado as mãos de forma beatifica.
-- Mas que bebida inventaram vocês desta vez? Que andaste a beber Luigi? -- perguntava com ar quase paternal a autoridade suprema, a quem tinham alcunhado de Nero.
-- Juro que não bebemos nada, Nero! -- Asseverava Jorge, com sinais de perturbação no rosto.
-- Raios partam, querem ver que neste calhau bom prós iogurtes, vocês apanharam uma insolação? -- Resmordeu Nero, cogitando que aqueles dois, não tinham imaginação digna de inventarem um disparate tão grande. -- Afinal onde viram vocês o Nosso Senhor?
Levaram Nero até um penhasco, por um carreiro. E foi então que todos viram uma claridade dentro daquilo que pareceia uma gruta, mas era apenas um calhau grande tombado de encontra a parede o penhasco. Os residentes seguiram Nero e este seguiu Luigi e Jorge, que sorriam apontando a luz:
-- Vêem!
Nero ficou com medo, e mandou o seu capanga Sertorius um gigante de 2,5m e 150Kgs de peso que fosse ver. Ele arrancou decidido por ali fora. Coisa que Sertorius nunca deve ter tido foi medo. Viram-no entrar na luminosidade e desaparecer. Mas demorou a vir. Nero olhava o relógio impaciente. Quando Sertorius voltou, parecia ter a face de um menino, tão pura e inocente. Nero achou que aquilo até ficava mal num gigante daqueles, e antes que perguntasse alguma coisa, Sertorius falou com uma voz meiga:
-- Nero, tens de ir lá tu! É tão bonito! Sinto-me...sinto-me feliz Nero. -- E começando a chorar -- Fiz tantas asneiras, mas o Senhor perdou-me de todas elas... Juro que nunca mais farei mal a ninguém!
Os restantes residentes riram-se, porque sabiam o génio de Sertorius, mas quando este olhou para eles calaram-se de imediato. Mas o olhar de Sertorius era meigo, quase como se pedisse desculpa.
Nero ficou intrigado, perguntando-se porque razão Nosso Senhor apareceria à escumalha da humanidade, mas depois o seu espírito prático de político trouxe-lhe a resposta: Era evidente que as possibilidades de sucesso eram muito maiores, aqueles desgraçados não podiam ser piores, portanto era só de esperar que se tornassem melhores!
Animado por esse pensamento avançou em direcção ao penhasco, também ele só podia melhorar.
A multidão seguiu, mas quando o viu entrar e desaparecer na luz, mantevesse respeitosamente à distância. Nero demorou a ponto de uma vaga de murmúrios passar uma e outra vez pela multidão.
Mas ele que apareceu, e erguendo os braços proclamou:
-- Meus irmãos... Anuncio-vos o Paraíso!

Sim, porque afinal, o Paraíso é sempre que um homem quiser...

O toque de Midas


Era sempre assim, a mesma sensação, quando o amor terminava. Ele apenas era capaz de ter amores sem saída, nenhuma saída, todos fadados ao mesmo destino de acabar. Era persistente, uma persistência doente, de insistir em amar, amores fúteis, amores impossíveis, amores castrados, amputados. Amores que gangrenavam, naquela angústia de tentar fazer que durassem mais um pouco. Não importava que amor fosse! Tanto fazia que fosse o amor de paixão, o amor de amizade, ou até mesmo o amor a Deus!
O seu amor era geneticamente imperfeito, sempre condenado a ficar a meio, incompleto. O que lhe enchia a alma depois de uma dor, que não tinha nada de físico, mas o inundava até à sufocação.
Tentara muitas vezes, tentara milhares de vezes. Tentara com coragem e com medo. Tentara com sinceridade e com hipocrisia. Tentara, tentara sempre, e o resultado fora sempre igual.
Por isso, ao invés de amar, tinha-se deixado amar. Mas não era o bastante. A sua carência era como um cancro dentro dele a crescer, para o destruir. Queria abraços, e beijos e carícias, palavras doces! Queria amar como quem respira.
Aos poucos curvara-se como se uma fatalidade o empurrasse sempre para baixo, até ao pó, como se a terra o reclamasse seu. E era, um pó, um pó sem importância, no meio de todas as coisas mais importantes. Um pó que se limpa com um pano e se sacode fora.
Sentia-se sacudido da vida, como se fosse um saco que se despeja.
Já não lhe importava nada que fosse isso. Não tinha a mínima importância. Tudo o que restava nele à medida que se esvaziava, era aquela vontade de amar, de amar, de amar! E tudo lhe escapava por entre os dedos, como se fosse areia ou água. Ninguém para amar, para se deixar amar, com o calor do vulcão que rugia dentro dele. Ninguém para amar da forma doentia com que amava, até à exaustão, ao limite, à agonia de não poder amar mais.
Queria compreender a sua doença, e ninguém ajudara. Talvez amasse porque nascera prematuro e sentira a falta da pele macia da mãe. Talvez amasse porque se sentia inútil e apagado no anonimato das nossas vidas quotidianas, e amar o fizesse sentir útil. Talvez amasse como suprema forma de egoísmo! Meu Deus, que miséria de humano!
Ou talvez aquela dor, fosse o merecido castigo de ser uma nulidade, que nenhum amor poderia resgatar! Que só a terra ao puxá-lo para si, ao encurvá-lo, pudesse compensar. Talvez fosse um monstro, não no físico, mas ode é mais estranho na alma! Na mesma categoria dos psicopatas e dos perturbados.
Teria de desistir de amar. Desistia sempre... Naquela amargura de saber que amar nele era um exercício vão. Totalmente em vão.
E Deus? -- Perguntarão. Talvez Deus sinta uma agonia igual ao olhá-lo, nas suas tentativas frustradas de amar. Na sua falta de critério, no seu estrabismo emocional, na sua instabilidade. Deus, pode apontar um caminho, mas como pode ele caminhar nele, se olha para os pés, encurvado? Como pode ajudá-lo, se ele não sabe amar? Se ama as pessoas erradas, que nada lhe dizem, que se calam no seu silêncio e se limitam a ser amadas, sem qualquer interesse nele? Ou até mesmo sem darem conta do seu amor? Deus não pode mandar anjos aquem olha sempre para o chão. Deus não pode forçar ninguém a seguir um caminho que dá vida. Deus não pode forçar os idiotas que amam sem tino!
Ele não sabe porque é assim. Não pode saber, porque está demasiado entretido a amar os outros, à procura de quem queira ser amado. A sofrer a dor de ficar vazio, lançador de sementes ao vento, que nunca darão flores para ele. Serão sempre outros a colhê-las em algum lugar. É amargo, amargo, como o toque de Midas!

24 novembro 2003

A Solução (a)Final


A panaceia viera mesmo a tempo! O desemprego atingira números catastróficos impondo uma sobrecarga aos meios de segurança social insustentável. Não havia dinheiro para suportar as necessidades daqueles que por fatalidade económica haviam ficado privados de emprego, logo dos meios de subsistência, logo de dignidade. Eram supérfluos! Eram apenas consumidores de recursos, num mundo em que 90% da riqueza estava nas mãos de 10% da população. Que futuro, para estes indesejados que faziam aumentar os impostos?
As ruas enchiam-se de vasculhadores de caixotes do lixo na noite da vergonha. De cartões nas estações de metro, onde se embalavam sombras humanas. Que saída haveria para este caos? Diziam alguns demagogicamente que eram todos uns malandrões que haviam muito trabalho, mas onde estava então esse trabalho? O Estado tinha promovido algum trabalho ocupacional, eram apenas meia-dúzia de desempregados em repartições fazendo actividades sem significado. Apenas uma outra forma de humilhar gente produtiva. Era inescusável, não havia mesmo trabalho para todos!
Fora primeiro a reengenharia, depois o terrorismo, depois a luta pela produtividade. A geração de milhares de desempregados. O resultado era fazerem-se coisas, com cada vez menos gente. Havia gente a mais para o mercado de trabalho. E era insolúvel.
Foi então que os mais ricos países do mundo, decidiram juntar-se em cimeira, e apresentar através da ONU a solução do problema: A colonização da Lua! As grandes multinacionais de imediato patrocinaram a ideia,e campanhas foram realizadas de modo a convencer as pessoas da nova oportunidade! Muitos comparavam a ideia, ao movimento que ocorrera na Europa em direcção à América e que abrira para muitos oportunidades sem fim. Os Estados deram prioridade aos mais desafortunados, pagando as viagens e todo o processo de instalação dos primeiros colonos na Lua. Os pobres não desconfiaram que a esmola era grande demais!
Toda a gente parecia feliz com a ideia! Os vasculhadores de lixo, e as sombras de cartão no metro, iriam agora produzir algo de útil e sair da vista dos privilegiados. Os especialistas em colonização espacial, garantiam que a vida na Lua, era totalmente execuível, com um elevado grau de autonomia da Terra. Seria uma lua-de-mel! Os primeiros lançamentos de space-shuttles, transformados em autocarros rumo à Lua, foram transmitidos para todo o mundo em directo. Tudo parecia certo e bom, havia lágrimas de felicidade e de saudade, nos rostos dos que ficavam, e nos rostos que partiam. Assumia-se a despedida para sempre!
As mensagens de email dos colonos na Lua, as suas mensagens de vídeo, pareciam ser tão semelhantes e cheias de lugares comuns. Tudo parecia correr demasiado bem aos colonos na Lua, aumentando a apetência de todos os amargurados de alma, por essa espécie de Paraíso selenita. Lembrei-me do meu avô, que me contara uma história semelhante, de coisas que luziam, e não eram ouro.
Houvera umas crises alimentares, e carcaças de gado suspeitas de terem a chamada doença das 'vacas-loucas', tinham sido colocadas em baldes plásticos e estavam a ser queimadas nos fornos das cimenteiras. Muitos baldes, tantos baldes! Um dia, um empregado, certamente por azar, deixara cair um balde e este rebentara, deixando ver uma cabeça humana... Foi tudo adequadamente investigado, e foi transmitida a ideia de que fora um assassinato macabro. Sem mais repercussões.
Pensem o que quiserem, eu ainda vasculho os caixotes do lixo, fugindo da polícia, que tem ordens para prender e enviar para a Lua, todos os sem-abrigo ou indigentes. Hoje em dia, até os doentes mentais são enviados para a Lua, dizem que descobriram que o ambiente lunar provoca serenidade, e que descobriram lá novas drogas para tratamento psiquiátrico. Mas ninguém pergunta porque não seria mais razoável as drogas serem trazidas da Lua para a Terra, do que enviar os doentes para a Lua?
Quem esquece o passado, está condenado a repeti-lo. A história repetia-se de novo amarga e negra.

20 novembro 2003

Esbracejando


Havia um enorme espaço em branco onde se encontrava. Era tudo branco! Pensou num risco azul e quando fez um movimento com o braço, apareceu no branco um traço azul. Que raio era aquilo? Pensou num prado de relva verde e fresca e quando abriu os braços, o espaço branco encheu-se de relva! E foi assim, aos poucos que descobriu que era deus. Um imitador do grande, mas ainda assim criativo.
E esbracejou dias inteiros, criando recriando, inventando e voltando a inventar.
E todo aquele poder, não era capaz de lhe dar o que sentia falta. Estava só. Mesmo no meio de prados lindí­ssimos, mesmo entre as flores ou as aves que voavam no céu azul que ele criara. Era tudo bonito, mas sempre a fazê-lo triste. Tentou tantas vezes fazer gestos com os braços e as mãos, mas ela não apareceu! Nem tinha vindo espreitar os seus mundos todos criados na expectativa dela! Com as flores que ela gostava, a relva verde e fresca que ela gostava!
Mas aquele espaço continuava vazio. Sentia que ela estava distante, cada vez mais distante. Não queria que ela fosse embora, mas possivelmente ela andaria ocupada como ele, a esbracejar, criando o seu mundo, ou desfazendo-o.
E imaginou milhões de pessoas em espaços em branco como aquele a esbracejar. Pensando serem alguma coisa, talvez até deuses, e não passando de criaturas solitárias, esbracejando e continuando a esbracejar.

19 novembro 2003

Caminhos



Caminho pelo passadiço sem rumo. Que interessa? Haverá um rumo, mais certo que os outros rumos? Porque se um está certo, todos os outros estão necessariamente errados? E se todos estão certos haverá a noção de que pelo menos um deles não seja tão certo quantos os outros?
Ligou o rádio, para ouvir alguma coisa, na velha nave de carga. Ligou os altifalantes na zona da tripulação e ouviu o ar encher-se de acordes musicais. No vazio cósmico não há som, por isso ele metia música, para afugentar qualquer vazio. Dos mil e duzentos tripulantes da nave de carga, só ele devia estar acordado. O resto dormia um sono criogénico, até ao próximo porto. Tinha tempo para pensar. O Universo tão grande, e as interrogações continuavam a ser maiores do que ele!
Olhou os diversos écrans da ponte, que fieis desenrolavam as anomalias todas detectadas enquanto ele estivera dormir. Nada de grave. Coisas de rotina. O Universo sabe ser bem comportado e prevísivel.Desde que a humanidade saltara para o espaço este nunca deixara de surpreender, mas depois de tantas surpresas aprendera-se sempre alguma coisa. Ou talvez não...
Lembrava-se da corrida pelos planetas distantes, agora já tudo era conhecido e não havia corridas, só naves como aquelas numa rotina pacata de transportar coisas de um lado para o outro, como se o Universo fosse uma grande casa desarrumada. Andava por ali, nunca assentara e sabia de famílias que haviam nascido, casado e morrido em naves de carga como aquela. Eram em si mesmas um planeta em órbitas sempre diferentes, ou talves nem isso. Perguntou-se para quê? E voltou ao seu problema dos caminhos. Haveria algum mais certo que os outros? Ou o problema estaria mal formulado, e o importante fosse criar um caminho e não qual devia ser percorrido?
Só para se divertir decidiu expor o problema ao computador principal, com a sua unidade de inteligência artificial avançada. O computador afirmou que para um caminho ter sentido, devia ter um ponto de partida e um ponto de chegada. O percurso devia ser rápido, económico e seguro. (Não se esqueçam que era uma velha nave de carga!) E partindo destes pressuspostos, certamente haveria um caminho que seria melhor do que todos os outros. O computador desfazia as suas lucubrações filosóficas, com uma crueza lógica. Mas se na vida havia esse caminho, ele com certeza ainda o não encontrara. Continuava a vadiar no cosmos em rotas conhecidas.

18 novembro 2003

O Homem dos Milagres



Não, ele não sabia porque Deus o dotara de tal poder, de tal dom. Apenas sentira aquilo no corpo e tivera de o fazer. Talvez fosse para compensar tudo o que perdera. Ou uma coisa ao acaso, como se Deus brincasse através dele. Não sabia.
Sabia como começara, de estar no funeral da jovem criança que morrera de leucemia. Aproximou-se, sentiu uma irresistivel vontade de se aproximar. Uma coisa mais forte do que ter fome ou sede, ou até do que a vontade de urinar! Nessa altura era apenas um sem-abrigo, um vadio de barba grande e cabelos desgrenhados. Aproximou-se perante a censura geral estampada nos olhares pontiagudos como punhais que o fitavam. Mas ele estava a ir levado por uma força maior dentro dele e a dominá-lo. A mãe chorava agarrada ao corpo sem vida da criança. Familiares ou amigos tentavam segurá-la. O padre dizia a sua litania, sempre igual, como se para Deus o ritual fosse o mais importante. De repente ali estava ele na beira do caixão, a olhar a criança, cabeça rapada, olhos fechados. Estendeu a mão sobre a face e repentinamente seguraram-lhe o braço, como se o dele estendido, apenas pudesse fazer mal. Mas não fez. Quando retirou a mão, a criança abriu os olhos, no espanto geral, gemeu qualquer coisa. A mãe deu um grito de alegria:
-- Louvado seja Deus!
A multidão lançou-se em curiosidade sobre o caixão, o padre atarantado, e ele escapuliu-se silencioso. E fugiu. Fugiu o mais que pode, mas sentia a mão a arder! Tanto poder! E para quê?
Mandou rapar a barba e cortar o cabelo. E nunca mais tocou numa garrafa. Era importante que não o conhecessem!
Da segunda vez foi mais discreto, o homem estava triste numa cadeira de rodas. Não falava. Um acidente segundo soube, de moto. Paraplégico na flor da idade. Estava lúcido, consciente. Deixou que o deixessem só por um pouco e aproximou-se. Mais uma vez, a força dentro dele a impeli-lo. Sabia o que í­a acontecer e tremia. Mas viu-se a por a mão na cabeça do rapaz e a dizer:
-- Depois que eu for embora levanta-te... -- e fugiu outra vez. E o rapaz levantou-se, andou e entrou na casa á procura da famí­lia.
Já não sabia quantos milagres tinha feito! Tinha de fazer e fugir, porque senão todos quereriam segui-lo e exigiriam que ele fizesse o milagre. E se não fosse capaz perguntariam 'Porquê?' E em nome de que Deus? E não era ele que os fazia! Era apenas quando sentia aquela força a invadi-lo e obrigá-lo a fazer. Não tinhas respostas, nenhumas respostas, apenas perguntas também.
Não havia nenhum milagre para ele, a não ser o de viver. Continuava um sem-abrigo a vadiar, pedindo esmolas, e fugindo, fugindo sempre no poder de Deus.
E estava cansado de fugir. O mundo precisava de milagres, milhares deles. Mas o maior de todos, era um que lhe devolvesse de novo a dignidade.

17 novembro 2003

A Espera



Andei perdido, a tentar encontrar o amor. Sim andei no deserto sem pontos de referencia andando em círculos. Andei sequioso a encher as mãos de areia. E tu estavas lá, silênciosa na tua espera. Olhando-me embevecida, contemplando a minha ternura, amando-me por ela. As outras não a souberam apreciar como tu apreciaste. E tu nem a usufruias. Esperavas na inocência dos teus 15 anos. Amavas-me porque vias como eu amava, a ternura toda que era capaz de depositar no meu amor. Olhavas e aguardavas. Foi aí que começaste a longa espera não foi?
Lamento a minha cegueira! Uma cegueira que se perdeu à volta de mulheres belas e sofisticadas. Tu eras simples. Eu sou simples. Mas pelo desafio do difícil, amei sempre mulheres complicadas. Mas tu sabias que eu era um homem simples. Sabias que um homem simples, tarde ao cedo encontra-se e descobre que para ser feliz, tem de amar uma mulher simples. Além de simples, foste sábia. A tua sabedoria criou em ti uma fé sem nome, feita de esperança.
Sim, também eu esperei o amor de mulheres complicadas, por longo tempo. Era uma esperança estúpida, uma esperança destinada ao fracasso desde o início, que sempre fui de percorrer caminhos impossíveis. Acreditei ingenuamente que o meu querer, era capaz de ter poder e modificar o Universo. Ou como acreditam alguns, mudar as estrelas. E tu eras uma estrela, cintilante, aguardando esperançosa que eu te nota-se, desse um sinal. Mas eu olhava demasiado a negrura da noite, que me invadia a alma toda e nem dava por ti, simples, sábia e cintilante. Eu desesperava e tu esperavas, na serenidade de saber que um dia a longa espera terminaria. Quanto tempo esperaste amor?
E nem fui eu que me salvei do acaso, do vento seco que me chicoteava a pele. Não fui eu que recuperei a sanidade mental, nem tampouco me tornei sábio. Foste tu com o teu amor que me ressuscitaste de uma morte anunciada! Foi o teu amor que leu, não sei onde, em que linhas, que a minha agonia atingia a dor que é insuportável demais para se continuar vivo. E abriste a tua boca numa cura. Estendeste os teus lábios num beijo virgem e desajeitado, cheio de força. E a força da tua esperança, entregaste-ma, para que por meio dela eu vivesse ou me encontrasse. Devo-te mais do que amor, devo-te a vida. Obrigado por teres esperado. Quanto foi a tua espera?
Dez anos, não foi? Há fés que duram menos do que isso! Infelizmente continuas a esperar não é? Agora as noites são passadas nestes encontros virtuais que a tecnologia consente. E tu esperas solitária nessa cama, que eu regresse. Fala-se com todo o mundo e todo mundo fala, palavras de nada, de encontros e desencontros. Como se os nossos escritórios, as nossas salas, os quartos, qualquer lugar fosse um lugar de passagem. É como uma enorme estação, com as amizades do momento a chegarem e a partirem, ao acaso nesta gare electrónica. E tu esperas.
Esperas que mais uma vez eu compreenda a patetice de andar ao acaso na vida, e olhe outra vez o céu à noite, e descubra nele a estrela que me guia.

15 novembro 2003

O Silêncio



Não conheço nada mais cruel que o silêncio. O silêncio depois de uma pergunta. O silêncio de olhar olhos nos olhos e não haver nenhuma resposta. O silêncio da indiferença fria. O silêncio do desprezo consumado. Detesto o silêncio, todos os silêncios, mesmo o silêncio das almas tranquilas. Como dói o silêncio de uma carta sem resposta. O silêncio de uma opinião por dizer. O silêncio de quem lê e depois não diz nada. O silêncio é o epitáfio de todas as mortes.
A minha alma está num desassossego permanente, como se um ruído de fundo a agitasse em permanência. É isso que me faz falar, escrever, contar coisas! Por isso rasgo o silêncio das palvras por dizer, o silêncio do papel em branco, o silêncio do calar da dor, da esperança e da alegria. Nada sei sobre o silêncio do amor, porque talvez nem saiba do amor, que ando neste ruído à sua busca, como quem caça rapaosas. Antes de cada separação, mesmo antes de cada findar, há esse silêncio maldito e amargo a prenunciar o fim, a trazer a tristeza.
Porque não respondes quando pergunto? Porque não escreves uma simples linha em resposta às minhas cartas? Porque não me dizes se gostas, ou desgostas das coisas que escrevo?
Tenho um terrível medo do silêncio que se abate há minha volta. Faz-me sentir só, tão só.
O silêncio com me coroas, é uma coroa de espinhos e dói mais profundamente que a dor na carne.
Por isso enquanto posso labuto contra todos os silêncios que me cerram os punhos e me pesam nos ombros. Mas sinto que é em vão. É como uma doença degenerativa que nos invade e domina, e não há nada a fazer.
Também eu um dia, me cansarei de dizer coisas, escrever coisas, rasgar este silêncio mortal que nos comprime! Haverá um tempo em que o silêncio também vencerá os meus lábios, dominará as minhas mãos e inundará a minha alma.

Na minha campa podem escrever se quiserem: Finalmente em silêncio.

14 novembro 2003

A Utopia

Era estranho! Era tudo muito estranho. Mas o que não era estranho naqueles dias? Tinham prendido um indivíduo, aparentemente não houvera crime nenhum, nenhuma violação da Lei, mas... Era estranho, muito estranho. A moça tinha 18 anos e saira de casa de noite e fora para a praia, segundo os pais dela para se encontrar com ele. Ele era um indivíduo de meia-idade segundo o BI, mas não parecia ter mais de 30 anos. Segundo a moça, ele era um amigo, e tinha evitado que ela fizesse uma loucura. Estava revoltada com a atitude dos pais, e pedia-lhe desculpa a ele. Ele sorrira e tranquilizadoramente dissera-lhe: "Não faz mal. A culpa não é tua. Hei-de sempre ter-te no coração..." E levaram-no. Fiquei com pena da moça que chorou desalmadamente. Cheguei a desconfiar...Palavra que cheguei a desconfiar que seriam amantes, mas o mais estranho veio depois.
Na esquadra foi interrogado. Contou que conhecia a moça dos chats da net, que aí tinham feito amizade. Nada de novo nisto, estava farto de ouvir histórias dessas. A moça tinha-o por confidente, e um dia confessou-lhe que desapontada com o amor cogitara o suicidio. Deixar-se ir no mar, entregar-se ao esquecimento para sempre. A partir daí decidiu que havia de ficar por perto. Trocram números de telemóvel. E naquela noite recebera um, era ela chorosa, ele percebeu e foi ter com ela.
Ninguém sabe o que falaram, o que fizeram. Tanto um como outro se calam nesse respeito. Fizeram uma espécie de pacto.
A moça foi examinada por uma médica, um pouco contra sua vontade, mas espetaram-lhe a peta, que apenas se queriam certificar que estava bem... Não havia sinais de ter havido qualquer actividade sexual. Os pais haviam esperado por ela a noite quase toda e como não viesse, em pânico vieram pedir auxílio à polícia. Alguém os vira na praia e foi rápido encontrá-los. O homem não ofereceu qualquer resistência, parecia tranquilo, pacifíco. Sempre que o seu olhar encontrava o dela sorria. Ela chorosa, parecia mais tranquila quando os seus olhos se encontravam. Parecia... Rídiculo como possa parecer, parecia como se fosse pai e filha.
Mas o interrgatório do homem revelaria coisas mais surpreendentes.
-- Então está desempregado?
-- Sim, estou...
-- Há quanto tempo?
-- Desde Maio.
-- Há quanto tempo conhecia a moça?
-- Não sei bem, algumas semanas, sou mau para datas.
-- O que queria da moça?
-- Amizade. Falar um pouco... Mostrar-lhe que há razões para ter esperança no futuro.
Nesta fase o sargento riu-se e o homem perguntou:
-- Não acredita que o futuro pode ser bom?
O sargento foi apanhado de surpresa e rugiu, não estava muito habituado a responder:
-- Que é que tem o que eu acredito? Hein?
-- Pois... Por certo que não tenho nada. É uma pena!
-- É uma pena porquê? -- disse o sargento em tom ameaçador.
-- São essas atitudes, que levam moças boas como esta a querer atirar-se ao mar.
Aquilo bateu no sargento mais forte que um murro no estomâgo. O sargento tinha duas filhas e uma em breve faria 17 anos. Ficou paralisado por instantes, para digerir a força das palavras ou talvez para tomar folêgo e voltou a rugir:
-- É como as tuas, que te aproveitas da inocência delas!
-- A única coisa de que me aproveitei, foi da oportunidade de dar.
O sargento riu com cinismo. Lidara demasiado com malfeitores e criminosos para acreditar em almas boas.
-- Querem lá ver! És um um santo, o Cristo em pessoa!
-- Se o seguissem o mundo seria melhor.
-- Deixa-te de merdas! A moça teve foi sorte! Sabe-se lá o que lhe ías fazer!
-- Sargento, ela é maior. Podia fazer sexo com ela, que não era crime. Mas não fiz. E sabe que mais sargento? Se fizessemos mais amor, mais entrega, se praticassemos mais o dar este mundo seria bem melhor!
O sargento explodiu em fúria, era noite, o dia fora aterrador, estava cansado de tanto mal no mundo e queria libertar-se daquela ansiedade que o sufocava lentamente naquela salinha de interrogatório. Virou-se de repente e deu um murro na mesa para assustar o homem, mas este estendera os braços e o murro do sargento acertou-lhe na mão. O homem gemeu de dor, e a mão começou a ficar inchada e negra.
O sargento chamou de imediato alguém:
-- Depressa uma toalha com água fria...
Virou-se para o homem e disse seco:
-- Desculpe.
O homem sorriu-lhe e disse:
-- Não faz mal, sei que foi sem intenção... Aliás dentro de dois minutos já está bem...
O sargento amoleceu e com ar realmente preocupado disse:
-- Deixe-me ver...
E para espanto a mão não tinha nada, visivelmente nada!
-- Quem é você?! -- perguntou o sargento com medo da resposta.
-- Eu sou a utopia.
O homem levantou-se e saiu pela porta fechada.

13 novembro 2003

O Anjo



Sentia-se, naquele dia meio nublado, como uma gota de chuva à espera de um raio de sol.
Sentara-se na mesa do café, e sem saber bem porquê viu-se a lembrar emails que lhe enviavam sobre os anjos. A maior parte era apenas lixo piegas a entupir-lhe a caixa. Outras eram correntes de emails a darem a volta ao mundo, prometendo a quem não quebra-se a cadeia, felicidade sob as mais diversas formas. Sorriu, o que nela era raro, na angustia de ver passar os dias e sentir-se mal-amada. Queria tanto um amor daqueles de virar uma vida do avesso, um vendaval de paixão e alegria. Começou a pensar que os anjos eram só nos emails e que o bom Deus devias estar demasiado ocupado com os males do mundo que cada vez eram mais, para ter tempo de se preocupar com o seu drama pessoal e secreto. Olhou o reflexo de si mesma no tampo brilhante da mesa de café e afastou o olhar. Sentia-se o patinho feio, e achava que nunca passaria disso mesmo.. Levantou os olhos para fugir de si mesma, e dos pensamentos amargos que a assaltavam. E foi nesse olhar fugidio que bateu com o olhar no sujeito em frente a si. Nem dera conta que alguém se sentara na mesa ao lado, mas ali estava ele. E quando os seus olhos se encontraram, ele sorriu.
Era um sujeito de meia-idade, elegante, sorriso largo, umas entradas generosas. E quando falou, a voz era suave, calorosa e agradável:
-- A menina desculpe, mas talvez me pudesse dar uma informação...
Ela não queria conversa, nenhuma conversa, mas sorriu sem saber muito bem porquê:
-- Se puder ajudar...
-- Acho que pode, -- disse o sujeito, sem deixar de sorrir, e tinha uns olhos de um castanho profundo e expressivos -- será que me podia dizer onde é a Rua da Felicidade?
Ela deu uma gargalhada, tão expontânea, que pôs a mão na boca e encolheu-se de vergonha ao ver que todos tinham olhado para ela! O sujeito riu mas mais baixo, e disse:
-- Já estou a ver não acredita que tal rua exista! É sempre a mesma coisa... Mas se houvesse o que acha que encontrarí­amos lá?
Ela percebeu que talvez o sujeito não quisesse saber rua nenhuma, e apenas fosse uma nova forma de engate. E sentiu-se desejada, cobiçada, e isso encheu-lhe o peito. Pena que o homem fosse de meia-idade apesar de simpático! Mas estava curiosa e continuou no jogo:
-- Pessoas.
-- Não deví­amos encontrar muitas, pelo qu ese vê hoje em dia. -- disse perdendo o sorriso.
Ela mergulhou nos seus pensamentos e também o brilho que havia nos seus olhos se esbateu.
-- Acredita na felicidade? - perguntou o sujeito com um novo sorriso.
Ela decidiu jogar à defesa:
-- E o senhor, acredita?
-- Chamo-me António... -- disse ele -- Pode tratar-me por tu. A diferença de idades é uma convenção. Um dia todos teremos a mesma idade...
-- Como assim?
Ele sorriu, mas não respondeu.
-- A felicidade não é tropeçar numa lâmpada e sair de lá um génio. Não tem que ver com a sorte. Tem que ver com decisões. O que somos é resultado de todas as decisões que tomamos, e quanto a isso, nada podemos fazer agora. Mas podemos tomar decisões agora que determinem o que queremos ser amanhã.
-- Acredita nisso? Não acha que pra tudo é preciso, sei lá... alguma sorte, uma boa estrela, não sei!
Ele sorriu de uma forma simpática, compreensiva. Não aquele sujeito não andava no engate, talvez lhe quisesse pregar um sermão! A ideia encheu-a de terror. Mas o sujeito calara-se e olhava para ela, sorrindo.
Ela riu-se:
-- O senhor é feliz?
-- Sou.
A resposta afirmativa, segura, tranquila, fê-la olhar longamente o homem. Tão longamente, que os seus olhos tiveram tempo de ficar húmidos. Ela não se sentia feliz, achava que nunca iria ser realmente feliz.
O sujeito, disse-lhe meigamente, quase num sussurro:
-- Tu também vais ser, mas precisas de acreditar nisso!
Nem reparou que ela o tratava por tu, sorriu-lhe apenas e não disse nada. O homem levantou-se, e já de pé disse-lhe:
-- Fica aí­ mais um pouco. Eu tenho de ir, e pago-te o café. Faço questão. Mas não esqueças nunca, precisas de fazer a tua parte Além disso hoje, o bom Deus quer dar-te um presente...
Ela ficou embasbacada com as afirmações e nem sequer conseguiu esboçar um protesto ou fazer uma pergunta. O sujeito pagou no balcão, voltou a olhar para ela, sorrir, fazer um aceno e sair. E quando ele saiu, entrou ele e olhou para ela, fazendo o seu coração pular. Ele viu-a e dirigiu-se à mesa dela:
-- Posso sentar-me aqui contigo, se não te importas?
E o sol rompeu, e na gota de chuva fez um arco-íris!

12 novembro 2003

Sem jeito



Lamento! Palavra que lamento este vazio no peito, que se vai enchendo de raiva e de dor. Sinto que a minha vida é como a fumaça que sai deste cigarro...
Sei que nem tudo foi mau. Nada há nesta vida 100% mau nem 100% bom. E sei que em toda a separação a culpa é dos dois. Desculpa a amargura e a revolta. Não mereces isso, porque contigo ainda fui feliz. Mas é este sentir que acabou, que doi demais e me coloca nas palavras uma raiva que não consigo travar.
Penso que é o sentir a vida meio sem sentido, como construir uma torre, para quando a julgava acabada, vê-la desmoronar. É semelhante à angústia que fica em quem perde tudo num fogo. Ficam as recordações, e mesmo essas sabemos que a memória um dia acabará por esquecer.
Porque tem a vida que ter toneladas de vento que procuramos ensacar sem nunca conseguir?
Dizes-me o porquê das coisas, ou nem tu sabes, tal como eu? Somos formiguinhas labutando atarefadas nas nossas vidas sem dimensão de futuro. É só presente! E este presente é cruel e amargo. Talvez seja por isso que gosto tanto do meu filho, ele é a única dimensão do futuro que me resta.
Gostava de dizer-te que a culpa também foi minha. Talvez devesse ser mais resignada, mais sujeita. Talvez devesse ter-me mantida quieta nalgum canto, brincando com as amigas em conversas de circunstância, limitado os meus sonhos, os meus desejos, as minhas expectativas. Com o que queres? Sou uma filha do vento, e parto em cada novo dia à descoberta de mim e do mundo. Sou também uma filha do mar, porque posso ser salgada e violenta como uma onda, na energia que o vento me confere. Desculpa eu ser como sou, mas é a minha natureza...
Se ao menos gostasses da espuma que crio quando tal como a onda rebento de encontra a falésia! Se a agarrasses nas tuas mãos e deixasses que o vento ta tirasse, saberia que havia ainda alguma esperança. Mas limitaste a deixar as mãos no bolsos, como um proletário cansado em final do dia. Esperei por ti, fumando cigarros atrás de cigarros num nervosismo doentio. Sei que tu me amas, mas gostava que mo dissesses. De qualquer jeito, de qualquer forma...