29 junho 2004

O Lamaçal



Tinham ficado atolados, depois do Jorge meter o jipe tracção às quatro rodas novinho em folha pelo declive e ter parado no meio do caminho que estava transformado em lamaçal!
-- Mete-se a tracção e saímos daqui...
Mas a tracção apesar de comparecer satisfeita num ajudou o jipe a sair do lamaçal. Este saracoteava-se mais que uma mulata num samba.
-- Acho que vamos ter de borrar os sapatos... -- escapou o Pacheco com um ar verdadeiramente aborrecido.
-- Bem me queria parecer que pró dia terminar em beleza precisavamos de um azarzinho... -- acrescentou o Fernando.
-- Esta ideia de virem prá aqui engravatados...
-- A ideia era termos uma reunião do partido!
-- Era uma reunião secreta, bolas!
-- Se ficarmos aqui atascados não vai ser nada secreta...
O Jorge calcou o acelerador a fundo de repente, tombaram todos, mas o jipe lá se libertou do abraço de lama e percorreu cambaleante mais uns metros. E antes da próxima poça de lama o Jorge voltou a embalar o Jipe a título preventivo.
A coisa ía.
-- Estava mesmo a ver... -- disse o Pacheco.
-- Eu cá não via é coisa boa!
-- Bem, agora é só esperarmos que o Cherne não dê lugar à Xaputa!

18 junho 2004

Lágrima de um Universo Perdido


Caiu silenciosa, sem um simples suspiro sequer. Caiu como a gota de uma árvore sobre a superfície quieta e branda do lago. A lágrima correu-lhe pela face macia e desprendeu-se para voar até ao chão.
Levou com ela, todos os sonhos de ser feliz e deixou um vazio e uma ausência que lhe emprestou uma tez pálida e um olhar fixo e distante. Distante como o seu amor. Fixo, como se nada pudesse alterar o rumo das coisas.
Inclinou suave o rosto para baixo, a tempo de ver cair aquela gota de sal, embater no chão e espalhar-se. Em pouco tempo, nenhum vestígio mais desse trágico acontecimento. Nenhuma humidade no chão ou na sua face, apenas aquele ardume a consumir-lhe lentamente o peito.
São impressionantes as possibilidades que se abrem em cada decisão nossa, do entrechocar de todas. Quando ela diz que não, ou ele diz que sim. Tudo gera uma multiplicidade de novas opções, como se fossemos berlindes multicolores chocalhados numa caixa a variar continuamente de padrão.
Por isso quando se deixa cair uma lágrima, é um sinal de luto pelo Universo que se perdeu...

08 junho 2004

Distância Intransponível


Não conseguiria saltar a tempo. Ao fugir correra sem saber para onde e ouvia os cães aproximarem-se rapidamente. Não tardaria e estariam sobre ele pronto para o apanhar. A polícia do ditador não era conhecida pela meiguice…
Tinha de saltar, mas o abismo devia ter à vontade uns 10 metros de largura, e mesmo que saltasse para a zona mais abaixo ainda assim arriscava-se a não se conseguir agarrar a nada e era um mergulho no vazio, para se estatelar pelo menos 100 metros mais abaixo. Olhou um ramo que pendia sobre o abismo, mas só dava para ganhar alguns metros e perdia a corrida e o balanço.
Podia tentar descer a parede quase lisa até ao fundo do abismo. Mas se a polícia desconfiasse disso, tinham tempo e sobra para o esperar lá no fundo, ou até talvez para de helicóptero passar para o outro lado da garganta e divertirem-se a disparar sobre ele.
Não havia maneira de fugir, encurralado entre os cães da polícia cada vez mais perto e aquela garganta como um corte na paisagem.
Não era um homem religioso, embora estivesse preso na colónia penal de Colopos por causa do seu apego a príncipios. Recusara-se aceitar que um ditador se auto-impusesse e governasse por usurpação. Não, também não era um político. Apenas tinha dito "Basta!" e fora o bastante.
Conseguira tirar a pulseira electrónica, emagrecera e os carcereiros nãos e deram conta que começava a a ser fácil para ele retirar a pulseira. Depois colocou-a no tornozelo do parceiro de cela. Chamava-se Homero, era um homem calado, demasiado calado. Uns diziam que tinha esmagado o crâneo de um homem apenas com as suas mãos, outros diziam que fora soldado e fugira. Não interessava nada. Colopos era um lugar de desterro, um calhau para todos os que não tinham mais futuro, no grande plano do ditador. Era um lugar para os esquecidos.
Os cães estavam agora tão perto, que teve a sensação de que não escaparia.
Ajoelhou-se e virando a face para o céu exclamou:
-- Deus! Se existes e eu acredito que existas, é uma pena que tenha feito um Universo sem qualquer sentido! E se a culpa é também minha, peço-te desculpa... -- e inclinou a face para o chão prostrado.
Foi então que ouviu uma voz:
-- De facto também tens culpa, mas que interessa isso agora? Segue-me...
Ele olhou estupefacto para todos os lados mas não via ninguém. Assustado perguntou:
-- Quem fala? Onde estás?
-- Estou aqui a aolhar para ti, palerma! Sou o rato á tua frente...
De facto à sua frente parara um rato e parecia mesmo falar com ele.
-- Devo estar doido...
-- Daqui a pouco estás é morto! Segue-me...
Ele seguiu-o sem pensar bem no que estava a fazer. Ouviu o barulho dos cães afastar-se em sentido contrário ao longo da beirada da falésia.
-- Não é possível! -- exclamou -- um rato que fala!
-- Ora essa! Porque não hei-de falar? Há alguma lei que proiba os ratos de falar?
Pensando bem, não havia. Sorriu.
-- Tens razão...
O rato pareceu sorrir e disse-lhe:
-- As únicas distâncias instransponíveis, são as do preconceito. Derrubado o preconceito, tudo se torna possível... Pensa nisso. Agora tenho de ir. Prazer em conhecer-te! -- E sumiu-se por entre a vegetação.